Mito 1: Ser bilíngue é
algo diferente e difícil.
Bilinguismo é simplesmente o uso alternado de duas
línguas, uma condição muito comum à maioria da população mundial. Visto assim,
o bilinguismo não é nenhum bicho de sete cabeças. Muitas pessoas nascem e
crescem em ambientes em que várias línguas são usadas, mesmo sem se dar conta,
como em lares em que os pais têm nacionalidades diferentes, ou crianças que
imigram para outros países. No Brasil nos acostumamos a achar que se fala uma
única língua, o português, porque as mais de 230 línguas faladas aqui foram
invisibilizadas. A maioria das pessoas do mundo é bilíngue, mesmo que nunca
tenha parado para pensar nisso. Mas muitos não acham que tem o direito de serem
reconhecidos como bilíngues, porque não consideram ter proficiência igual nas
duas línguas.
Mito 2: Para ser bilíngue
de verdade é preciso ter total domínio das duas línguas.
Quem pode dizer que tem domínio total da língua
portuguesa? Ou de qualquer outra? Afirmar isso é muita pretensão, pois
significaria que você compreende, fala, lê e escreve com competência em
todas as formas da língua, com todos os tipos de falantes, todos os gêneros de
texto, em todas as situações. É claro que conhecer muito bem a língua
portuguesa e a segunda língua são ótimos objetivos. Quanto mais se sabe,
melhor. Mas se para ser bilíngue alguém tivesse que ter o mesmo domínio das
duas línguas, em um nível muito alto, ninguém poderia ser chamado de bilíngue. Então,
o desafio é para a vida toda: ampliar as competências linguísticas, nossas e
dos outros, sempre, em quantas línguas forem possíveis.
Mito 3: Educação bilíngue
é melhor que a educação monolíngue
A educação é algo muito complexo. Não ocorre apenas na
escola, porque os pais, os colegas, os outros adultos, a televisão, a internet,
o videogame… tudo isso também educa uma criança. E na escola não se aprendem
apenas as línguas: se aprende a pensar, a aprender, a viver junto, a ter
disciplina, a ter amigos. Também se aprendem conteúdos de todas as áreas do
conhecimento. Então, com tudo isso, considerar apenas a educação bilíngue para
definir uma escola é muito pouco. Escolas bilíngues ensinam duas (ou mais)
línguas, mas também ensinam os conteúdos por meio das mesmas línguas. Seu
objetivo deve ser a formação integral das crianças: ética, estética, acadêmica,
emocional, etc. Há excelentes escolas bilíngues, que fazem isso muito bem, e há
também escolas bilíngues que não fazem, assim como ocorre com escolas
regulares. Então, antes de tudo, temos que pensar o que é uma boa educação, no
geral, para pensar se a educação bilíngue é uma opção que vale a pena, em cada
escola, para cada família. Por que a educação bilíngue não é, em si mesma, boa
ou má e depende de como e com que objetivos seja feita.
Mito 4: Educação bilíngue
é para poucos.
Toda e qualquer criança tem o direito de frequentar
uma escola e ser enriquecida por essa experiência: relacionar-se com o
conhecimento de um ponto de vista colaborativo, participar de um grupo,
brincar, aprender tanto quanto puder. Cada criança é diferente, cada uma
aprende de um jeito, mas todas são capazes de aprender matemática, ciências,
artes e línguas. Portanto, educação bilíngue é para todas as crianças, não
apenas para as que têm maior facilidade. Pena que em nosso país poucas crianças
têm a oportunidade de desenvolver todo seu potencial na escola. Pena que a
desigualdade não permita que todos tenham acesso aos recursos educativos que
desenvolvemos. Pena que muitas crianças imigrantes, surdas, indígenas ou pobres
não tenham a oportunidade de desenvolver todas as suas competências
linguísticas em escolas que considerem suas necessidades, interesses e desejos.
Mas que elas são capazes de aprender, de se beneficiar de uma boa educação
bilíngue, isso não se deve duvidar. Temos sim a obrigação ética de lutar por
seus direitos linguísticos, bem como pelos demais.
Mito 5: Educação bilíngue
tem que ser em inglês e português.
É verdade que a maioria das escolas particulares
bilíngues no Brasil tem o inglês como segunda língua, até porque o inglês hoje
é uma língua global, necessária para a comunicação. Mas é verdade também que há
escolas bilíngues que tem ensino em japonês, alemão, francês, kaxinawá,
tupi-guarani e muitas outras línguas. E quanto maior a diversidade de línguas
presentes em nosso país, maior será nossa riqueza.
Mito 6: Todas as escolas
bilíngues no Brasil são particulares.
Há escolas públicas bilíngues no Brasil, voltadas às
minorias linguísticas: surdos, povos indígenas e moradores de fronteiras. Deveria
haver muito mais. Deveria haver escolas públicas bilíngues em comunidades
quilombolas, e em bairros com alta densidade de imigrantes, porque as crianças
que vão para a escola pública e não falam português não conseguem aprender as
matérias se não entenderem a língua. Deveria haver um ótimo ensino de línguas
em todas as escolas do país, inclusive com programas de educação bilíngue, para
que todas as crianças e jovens que quisessem aprender línguas e ter acesso a
mais informações o pudessem fazer.
Mito 7: Escolas bilíngues
devem seguir dois currículos, o brasileiro e o de outro país.
O que é um currículo? É o que define que tipo de aluno
se pretende formar e como isso será conseguido. O currículo organiza o ensino
da escola com base em uma grande variedade de fatores: perfil dos alunos e da
comunidade, filosofia pedagógica da escola, disponibilidade de professores,
objetivos de ensino, materiais disponíveis, entre outros aspectos. As escolas
bilíngues no Brasil não têm uma regulamentação específica, estando sujeitas às
mesmas leis e obrigações que as demais escolas. Por isso, seguem os Parâmetros
Curriculares Nacionais propostos pelo Ministério da Educação, o que é bom, pois
garante certo encadeamento e continuidade caso a criança mude de uma escola
para outra. Algumas escolas adotam também o currículo de outro país, o que é
complicado. Se não houver um trabalho muito cuidadoso e competente de adaptação
à nossa realidade e às nossas crianças, a maior probabilidade é de se fazer uma
colcha de retalhos. A melhor saída para isso é se construir um currículo
integrado, pois o aluno é um só e as conexões serão feitas por ele sozinho, ou
com apoio da escola.
Mito 8: As crianças
bilíngues tem duas culturas.
Muitos pais e professores estão preocupados em
preservar “a cultura brasileira”, ou em ensinar “a cultura internacional”, ou “a
cultura americana” mas a pergunta para eles seria quais são as suas culturas? Eles
demoram a responder, se justificando: “Ah, eu gosto de futebol, mas não sou
fanático, e de vez em quando vejo o Carnaval, mas não gosto de samba, então,
tenho a cultura brasileira, mas não muito”. Parece que a cultura é uma feira, aonde
você vai, olha, escolhe o que quer ou não, o que vai querer levar para casa. É
como se houvesse uma coisa chamada “cultura brasileira”, e o mesmo para outras
culturas. Mas isso é uma visão muito limitada de cultura. Um país como o nosso,
com tanta riqueza e variedade, não tem uma cultura única. O que é e o que não é
cultura brasileira? Será que há características que valem para as pessoas nas
capitais e no interior, no sul e no norte, nas cidades litorâneas e na floresta
amazônica? É claro que há muitas culturas no Brasil, e que elas são muito mais
do que os estereótipos de samba, futebol e carnaval que se vende nas
propagandas do país. Então, as crianças nas escolas bilíngues ou regulares não
precisam aprender a cultura sob este ponto de vista. Vão se beneficiar muito
mais se virem a cultura como a vida, os hábitos, as semelhanças e diferenças de
modos de viver, pensar e organizar o mundo, que estão lá, no próprio dia-a-dia
da sala de aula. E aprender com a diversidade pode ajudá-las a ser mais
tolerantes e respeitosas, ter mais autoestima e segurança, e desenvolverem curiosidade
pelo mundo. Não há apenas duas culturas nas escolas. Há muitas.
Mito 9: A escola bilíngue
deve alfabetizar primeiro em português e depois na segunda língua.
O que é uma pessoa alfabetizada? É alguém que consegue
juntar as letras, percebendo os sons que formam? Ou aquele que sabe ler e
escrever palavras simples, bem como assinar seu nome? Seria aquele que sabe ler
e escrever qualquer tipo de texto? Quando uma criança consegue “decifrar” como
as letras se juntam, e está curiosa em descobrir o maravilhoso mundo da
leitura, ela tenta ler tudo o que vê pela sua frente: placas de rua, folhetos,
jornais, gibis, etc., seja lá em que língua estiver. E andando pela rua, todas
as crianças vão encontrar muitas palavras em várias línguas: marcas dos carros,
propagandas de lojas, anúncios publicitários. Ela vai lê-los, independentemente
de saber a pronúncia correta dos sons ou não. Se a criança for bilíngue, nessa
leitura reconhecerá várias palavras já conhecidas, podendo até perceber qual é
a pronúncia correta. Chamamos a isso de ajuste fonético. Sua experiência com a
cultura escrita e com as línguas a ajuda a decifrar essas escritas e a
compreendê-las, e assim, quando as crianças bilíngues começam a ler em uma
língua, naturalmente tentam ler na(s) outra(s) também. Se as línguas tiverem o
mesmo registro (as mesmas letras) como português, italiano, alemão, espanhol,
francês, inglês, etc., ela consegue fazer essa leitura, com ou sem a ajuda da
família e da escola. Podemos ignorar tudo isso, por um pressuposto nosso, de
que seja difícil para ela, que vai confundi-la, que não vá aprender, mas a
experiência e as pesquisas demonstram que se a ajudarmos ela consegue sim
aprender a ler e a escrever com tranquilidade, em duas ou mais línguas. O
problema não é a criança, mas sim nosso preparo para lidar com a complexidade
dessa situação, que geralmente é diferente de nossa própria experiência. Conclusão:
a criança só se alfabetiza uma vez, não há duas alfabetizações, como se fosse primeiro
uma, depois outra.
Selma Moura
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